Leio. Ando sempre com livros na mala. Às vezes, nem sei bem o que leio e deambulo pelas páginas, pelas lombadas, pelas badanas à espera de encontrar algo que me chame a atenção, que me prenda, que me puxe para terra. Depois, outras vezes, encontro livros ou autores que têm sobre mim um efeito visceral. Não consigo ler (porque me faz doer o peito) / Não consigo parar de o ler.
«O meu pai não andava, rolava como um rochedo no flanco de uma colina. Nunca lhe vira um acesso de cólera semelhante. Estava a dois dedos de implodir. O rosto estremecia com tiques; os olhos tentavam enterrar o mundo. Não dizia nada, e o seu silêncio em ebulição conferia à sua atitude uma tensão que me fazia temer o pior.
Quando já estávamos longe, empurrou-me contra uma parede e mergulhou o seu olhar demente nos meus olhos amedrontados; uma chumbada não me teria abalado da cabeça aos pés com tamanha brutalidade.
– Achas que não valho nada? – disse ele, com a garganta contorcida. – Achas que pus no mundo um garoto para o ver morrer a fogo lento?... Enganas-te. E o hipócrita do teu tio engana-se. E o destino que parece humilhar-me engana-se redondamente... Sabes porquê? Porque eu posso ter perdido o meu lugar, mas não perdi a alma. Ainda estou vivo e cheio de força. Tenho uma saúde de ferro, braços capazes de erguer montanhas e um orgulho a toda a prova.
Os seus dedos enterravam-se-me nos ombros, magoavam-me. Não se dava conta. Os olhos reviravam-se no rosto como berlindes ao rubro branco.
– É verdade que não consegui salvar as nossas terras, mas, lembra-te, fiz crescer trigo!... O que aconteceu a seguir não foi culpa minha. As preces e os esforços reduzem-se muitas vezes a nada perante a cupidez dos homens. Fui ingénuo. Agora já não sou. Mais ninguém me baterá nas costas... Parto do nada. Mas prevenido. Vou trabalhar como nenhum negro trabalhou, enfrentar os sortilégios, e tu verás, com os teus próprios olhos, como o teu pai é digno. Vou sair do buraco que nos engoliu, vou livrar-me dele, juro. Ao menos tu acreditas em mim?
– Sim, papá.
– Olha-me bem nos olhos e diz que acreditas em mim.
Já não tinha olhos, mas dois papos de lágrimas e sangue que ameaçavam engolir-nos aos dois.
– Olha para mim!
A mão dele pegou-me violentamente no queixo e obrigou-me a levantar a cabeça.
– Não acreditas em mim, é isso?
Eu tinha um enorme coágulo na garganta. Não conseguia falar nem aguentar o seu olhar. O que me mantinha de pé era a mão dele.
Subitamente, a outra mão atingiu-me a face.
– Não dizes nada porque pensas que deliro. Fedelho ranhoso! Não tens o direito de duvidar de mim, ouviste? Ninguém tem o direito de duvidar de mim. Se a porcaria do teu tio não dá nada por mim, é porque não vale mais do que eu.
Era a primeira vez que levantava a mão para mim. Eu já não compreendia nada, não sabia que mal fizera, porque se virava contra mim. Tinha vergonha de o encolerizar e medo que me renegasse, ele que, a meus olhos, era o que mais importava no mundo.
O meu pai voltou a erguer a mão. Deixou-a suspensa no ar. Os dedos vibravam. As pálpebras inchadas desfiguravam-lhe o rosto. Emitiu um estertor de animal ferido, puxou-me contra o peito a soluçar, e apertou-me, com tanta força e durante tanto tempo que me senti como se estivesse a morrer.»
26 comentários:
Ai Frô... Ai Frô...Ai Frô
Parece-me muito interessante esse livro!
Que livro é?
Interessante.
Arrebatador! Fiquei presa, muito bom mesmo!
Também ando "bebada" com o livro que tenho na mesinha de cabeceira- A sombra do Vento de Zafón.
Mas o meu tempo para ler são os 30 minutos que me permito antes de adormecer, não dá para mais :(
Uau!
Diz o nome do livro sff!
Que livro é? este excerto deixou-me com água na boca.
Tenho andado um pouco arredada das leituras... autor? título?
Vá, mulher! Desbronca-te lá!!!
lol, Yasmina Khadra é o autor. Título ainda não há. ;)
então que livro é??? Não é teu não???
Vá lá, eu preciso de me apaixonar por 1 e o verão está mesmo aí e as férias. Vá! :) Amei, mesmo
Ladys,
ainda ñ está à venda em Portugal. Não estou a fazer-me de difícil. :) q se eu ecrevesse assim tb quereria q o mundo o soubesse. :D
O autor é Yasmina Khadra. Eu estou a ler o francês. Isto é uma tradução.
O título francês é Ce que le jour doit à la nuit (O que o dia deve à noite) e foi eleito, pela revista Lire o melhor livro - publicado em França - de 2008.
Fiquei colada ao ecran... gostei tanto...
Será desta que recomeço as minhas leituras em francês? Há autores que só tenho em francês por tardarem algumas tradições (Pennac, Le Clézio, John Irving, Belletto...)mas há muito que já não o faço... Abriste-me o apetite...
flor...qd for feita a tradução, dá p fazer em audio? lol
n "sei" ler...tnh ansiedade sofrega e leio os livros em 24 hr... :/
foram mts anos a ler livros tecnicos e em jejum e agora, qd pego num é spre assim....
e agora, cm fico, sem saber mais??? :P
bj meu
Já me desmotivaste... em francês é que não... ia custar-me mto a ler. Portanto, já desisti à partida.
Sim, SOU PREGUIÇOSA!
Se pagarem bem - i.e. o preço justo - eu traduzo. Sabes se já há editora interessada?
se bem q se foste tu a traduzir... vou passar a comentar-te em francês, juste entre nous, quoi!
Muito bom, mesmo!
Mas acho que em francês... já não tenho pedalada suficiente!
Bjocas
...espero que também leias o meu livro, e já agora que depois faças uma critica ;O)
Bjs
Ai caredo, que é que tu andas prai a ler??!!
Eu gosto de cenas mais light, comicas, pra desanuviar :D
jocas
Bem podias ser tu a fazer a tradução;)
É que há traduções e traduções... E a tua é, sem dúvida, uma daquelas que nos faz ter vontade de ler o resto do livro!
Acompanho, embora que em silêncio, o Frald(i)ário há imenso tempo mas hoje achei por bem parabenizar-te;)
Bjcas e boas leituras
Fantástico!
Depois quero convite para o lançamento... LOL
Texto impressionante!
Cristina
Arrepiada!!
E mais não preciso de dizer...
bjs
Postar um comentário